Do crente ao ateu, não faltam explicações para o racismo religioso no Brasil
Por Maíra Vida*
Uma das medidas da qualidade da democracia, num estado que adere a esse regime político, é a efetividade dos direitos e garantias fundamentais, que pode ser observada pela capacidade (ou não) de fruição dos direitos e das liberdades, individuais e coletivos, pelo povo, que é o componente central de uma organização deste molde, sobretudo, quando não se recusa a realística possibilidade de existência próspera de sociedades sem estado, mas não do estado sem sociedade, o que a experiência de nossos povos originários demonstra irrefutavelmente.
A intolerância religiosa e o racismo religioso não integram a pretensão de um estado democrático e laico, não fazem parte, na concepção e no programa, de uma comunidade constitucional inclusiva, ou seja, uma comunidade em que todas as pessoas sejam sujeitas de direito. Aqui no Brasil, entretanto, a intolerância religiosa se confunde com a própria colonização e com a escravidão nas américas e aprendeu a se metamorfosear e seguir autoimune à república e à democracia.
A primeira codificação brasileira foi um código penal, em 1830, antes de um código civil próprio – que chegou quase 100 anos depois -, mas ambos nascem afogados por discursos supremacistas e patrimonialistas subsidiados pelo que chamamos de racismo científico e racismo institucional, epistemicídio, darwinismo social, punitivismo e liberalismo econômico, elementos de sedimentação do genocídio material e imaterial dos povos negros e indígenas, indicadores poderosos das tecnologias eleitas pelo estado para estender o seu poder à sociedade e lidar com particulares: classificando-os e segregando-os.
Não surpreende a posição do estado brasileiro, até a década de 50, século XX, de total negação da existência de qualquer forma de racismo ou de discriminação racial, com base na difundida tese da democracia racial, e oposição ao reconhecimento da relação intrínseca entre racismo e intolerância religiosa no Brasil. Evitava-se assumir até mesmo a necessidade de debater a problemática, pois o país promovia uma imagem de aceitação plena de todas as pessoas e crenças, de convivência harmônica e pacífica entre as raças e grupos sociais diversos, mesmo à denúncia das políticas eugenistas, muito populares até a década de 30, cujo manejo hábil do universo jurídico chegou a quase fulminar a possibilidade de diversidade representativa nas instituições, a partir do apelo à padronização do próprio corpo social.
As religiões afro-brasileiras sempre foram marginalizadas e criminalizadas, com reforço do Direito, o que ilustra a engenhosa e potente máquina de controle social do estado, que incide sobre subjetividades, consciência e arbítrio. No Brasil, a repressão institucional sistemática chegou a coagir lideranças religiosas à solicitação de licença especial de autorização para funcionamento às polícias e à emissão de laudo sobre a saúde mental de suas sacerdotisas e sacerdotes para ministração.
Achille Mbembe trata sobre controle social a partir do novo léxico que ele mesmo cria, necropolítica, hoje, já entendida como um campo de estudo, que avalia o exercício do estado dirigido a determinadas parcelas populacionais de forma a, independente de um estado de calamidade pandêmico, como o que vivemos, garantir que a “normalidade” das condições de vida desta gama de pessoas e coletividades seja um verdadeiro estado de exceção, pela falta do mínimo existencial e exposição contínua à morte biológica, social e simbólica: seja pelo braço armado do estado, seja pela vingança privada a alguns autorizada, seja pelas injustiças socioculturais e político-econômicas, seja pela impunidade. Por essa via, alguns corpos, grupos, convicções políticas, filosóficas e religiosas hegemônicas detém certos privilégios e aproveitam, intencional ou não, premeditadamente ou não, o bônus gerado pela hiperconcentração das vulnerabilidades despejadas em outros grupos.
Qualquer religião pode sofrer intolerância religiosa. O desrespeito religioso consiste em qualquer conduta dirigida a limitar ou impedir o pleno gozo da liberdade religiosa, que é um direito fundamental que se conecta com tantas outras liberdades, como a de pensamento, de expressão religiosa, artística, de associação, crença e consciência. As práticas de intolerância religiosa se fundamentam na desigualdade de direitos, em ofensas destinadas à pessoa ou à comunidade religiosa, descredibilização e desqualificação, a partir de um modelo de moralidade religiosa, podendo incorrer na incitação ao preconceito e à discriminação, típico crime de ódio religioso, previsto no art. 20 da Lei nº 7.716/89.
É preciso, por honestidade intelectual e política, consignar que a intolerância religiosa no Brasil se revela de forma mais violenta, degradante e letal contra religiões afro-brasileiras – estatisticamente demonstrado - e isso é legado do racismo e um problema a ser enfrentado e combatido por toda a sociedade brasileira, mas, sobretudo, por quem criou, recria, preserva e reproduz o racismo e de quem usufruiu ou usufrui das benesses dessa dita herança, pertencente a poucas pessoas, mas, que continua condenando à pena de morte (em vida) toda uma maioria silenciada.
Assumir o pluralismo religioso como um valor social é a resposta política abalizada numa sociedade republicana, e que se pretende democrática, para lidar com os desafios da diversidade e conflitos de interesses, mormente quando fundamentados na moralidade religiosa. A inviolabilidade da liberdade de crença, consciência e culto é um direito fundamental consagrado pela Constituição federal de 1988, no art. 5º, §6º e em outros dispositivos do mesmo diploma, de legislações internacionais ratificadas pelo país e infraconstitucionais. Essa norma garantidora da diversidade só é possível em um estado laico e democrático de direito porque a liberdade religiosa é uma conquista popular da substituição da religião pelo direito, como moldura ética administrativa do estado.
A laicidade não transforma o Estado em neutro. Temos um abismo funcional em se tratando do implemento da laicidade no Brasil, mas esse estado, através dos seus agentes e instituições, passa a dever imparcialidade, tanto internamente quanto nas relações internacionais, sendo forçado a justificar eventuais desvios, favorecimento ou abusos dirigidos.
Em parte, fomos vencidas/os: há imensa dificuldade entre nós, juristas brasileiras e brasileiros, de inclinarmos nossa escrita para a liberdade religiosa, em si mesma, seja como direito, seja como liberdade, porque acabamos por trata-la a partir da ausência (de eficácia) ou da sua existência mitigada pela violência religiosa. A percepção de quem lida com casos de violações de direitos humanos e intolerância religiosa no ano de 2020 é de crescimento dos casos em plena pandemia, o que confirma que o desrespeito religioso é endêmico, problema de segurança pública, mas, também, de saúde pública, pois adoece e mata. E, por isso, a intolerância religiosa sequestra as nossas atenções.
Concluo enaltecendo a trajetória de Mãe Gilda que, mesmo após a sua fatídica morte, deixa para o campo dos direitos humanos e das relações raciais um precedente jurisprudencial paradigmático.
A Iyalorixá Gildásia dos Santos e Santos, conhecida como Mãe Gilda de Ogum, que fundou em 1988 o Ilê Axé Abassá de Ogum, após ter sua saúde fragilizada em decorrência de agressões morais e invasão do Terreiro por extremistas religiosos, fora fatalmente vitimada pelo ódio religioso. Em 28 de Novembro de 2014 foi inaugurado um busto em homenagem a Iyalorixá, as margens da Lagoa do Abaeté. Relevante ativista social local, Mãe Gilda teve sua vida e legado reconhecidos pelo governo federal com a criação da Lei nº 11.635/2007, que estabeleceu a data de deu falecimento, o dia 21/01, como Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, em sua memória e em memória de sua luta.
A família de Mãe Gilda demandou judicialmente a organização religiosa pelo uso indevido de sua imagem associada a calúnia e difamação, bem como acerca da invasão do terreiro, seja pela inviolabilidade do direito à propriedade (privada), seja por se tratar de local de culto. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) condenou a igreja a indenizar os filhos e o marido da sacerdotisa do candomblé por danos morais.
O Caso Mãe Gilda inaugurou um importante precedente jurisprudencial. O STJ, em decisão inédita, julgou uma ação que envolvia intolerância religiosa cometida por uma instituição confessional. Entretanto, preferíamos Mãe Gilda viva, uma daquelas obviedades que precisam ser ditas. Nenhuma reparação indenizatória compensa a perda de uma vida. De igual modo, a liberdade não tem preço.
Do crente ao ateu, não faltam explicações para o racismo religioso no Brasil. Mas, nenhuma justificativa é aceitável ou plausível. Racismo religioso é crime, conforme dito alguns parágrafos atrás, e deve começar a ser correlacionado, também, a legislações especiais que tratam de crimes hediondos, de terrorismo e tortura, ou seja, estamos tratando de um crime contra a humanidade, pois o seu mecanismo é a necropolítica para promover o gerenciamento da vida, aqui inseridos o modo de viver e de cultuar, para assegurar como resultado o genocídio.
A luta por liberdade religiosa é, antes de tudo, luta pelo direito à vida. E é para vocalizar isso de todas as formas possíveis, e por todos os meios legítimos, que nos levantamos para a luta.
*Advogada, Professora, Conselheira Estadual da OAB BA e Presidenta da Comissão Especial de Combate à Intolerância Religiosa
Para mais informações sobre a Comissão Especial de Combate à Intolerância Religiosa da OAB BA e o seu trabalho ou para participar, contate-nos pelo email: [email protected].