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Editorial: Regras claras evitam abusos e desgastes

Brasília, 24/04/2009 - O editorial "Regras claras evitam abusos e desgastes" foi publicado hoje (24) no jornal Valor Econômco:

"Em 1971, a mesa diretora da Câmara editou o ato de número 4, que concedia quatro passagens mensais para os deputados, uma delas no percurso Brasília-Rio-Brasília. Apenas dez anos separavam o ato da inauguração de Brasília e da mudança da capital federal, antes no Rio de Janeiro, para um distrito incrustrado no ponto central do país. Três das passagens mantinham o deputado regularmente no Estado pelo qual se elegera, em contato com os seus eleitores. A outra supunha que o parlamentar ainda tinha interesses políticos e assuntos ligados à sua vida parlamentar na antiga capital.

No ano de 2000, o deputado Michel Temer, em seu primeiro mandato na presidência da Câmara, abriu a primeira brecha para abusos: em vez de passagens, o deputado passou a receber um crédito para viagens, calculado com base no valor da passagem para o Estado de origem. Se não usasse a sua cota integral, o parlamentar poderia dispor do crédito para passagens a familiares ou a terceiros, ou para fazer viagens de turismo, ou ainda retirar o correspondente ao que sobrou em dinheiro.

Em 2002, já sob a gestão do presidente Aécio Neves, a mesa da Câmara concedeu aos integrantes da mesa e líderes um adicional de cota de passagem. Os membros parlamentares da direção da casa passaram a ter direito, além de sua cota individual, ao adicional de 70% sobre a maior cota (concedida aos parlamentares de Roraima, a passagem mais cara); aos suplentes da mesa e líderes, foi concedido um acréscimo correspondente a 25% sobre a maior cota. O Senado tem a mesma sistemática, de definir cotas individuais e adicionais sobre elas para membros da mesa e líderes.

A concessão de benefícios pela mesa aos parlamentares segue sempre algumas lógicas políticas. As mesas diretoras das duas casas são eleitas pelos seus pares e tendem a transportar para as eleições internas as mesmas práticas da política tradicional clientelista: o conjunto dos parlamentares são seus eleitores e devem ter seus interesses particulares atendidos como paga por seu voto. Como a opinião pública passou a vigiar com atenção a vantagem que é transparente - o salário que o parlamentar recebe para representar o seu eleitor no Legislativo -, a tendência é que os favores ao "eleitor" das mesas sejam transferidos para os benefícios - passagens aéreas, verbas de representação, auxílio-moradia etc. Estes acabam sendo uma extensão do salário, sem que exista qualquer controle sobre o seu uso.

O que tem acontecido regularmente é que as "torneiras" pelas quais vazam recursos no Congresso têm sido fechadas apenas quando estoura um escândalo. Estão certos os parlamentares quando dizem que não cometeram ilícitos ao destinarem passagens aéreas a parentes e a terceiros, ou ao usarem-nas para fins particulares. De fato, a regra foi feita de tal forma que a cota de passagens passou a ser de uso pessoal, privado, do parlamentar. Todavia, as regras demasiado permissivas contribuem para que o Legislativo acumule desgastes perante a opinião pública. E a boa imagem do Legislativo não interessa apenas aos eleitos de hoje, mas à democracia de hoje e sempre do Brasil.

Se os parlamentares se sentem protegidos pelo fato de que não terem infringido normas, não se pode, contudo, culpar a opinião pública por se horrorizar com abusos. O fato, por exemplo, de que no período de janeiro de 2007 a outubro de 2008 terem sido emitidas 1.885 passagens internacionais pela cota pessoal dos deputados não é algo prosaico. O uso quase indiscriminado de cotas para fins que não sejam o cumprimento do mandato também não o é. O caso da família do ex-diretor de Recursos Humanos do Senado, João Carlos Zogbi, que fez 42 viagens com a cota de 12 deputados, por sua vez, mostra como a prodigalidade com o dinheiro público foge ao controle inclusive dos parlamentares - quatro dos ouvidos pelo site Congresso em Foco, que deu a informação, sequer conheciam os beneficiários de suas cotas.

Um pacote moralizador, segundo bem disse o presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Cezar Britto, deve corrigir um "erro cultural, danoso ao Estado". Não há como negar ao parlamentar passagens aéreas, mas elas devem ser destinadas exclusivamente ao uso parlamentar. Essas regras devem ser claramente explicitadas. As mesas não são eleitas para facilitar abusos, mas para coibí-los."