Notícias

Edição desenfreada de MPs inibe função do Congresso

Por Manoel Carlos de Almeida Neto

Sob a égide da Constituição Republicana de 1988, um dos maiores problemas enfrentados pelo Legislativo é a obstrução da pauta das sessões deliberativas provocada pela apreciação de medidas provisórias, excessivamente editadas pelo chefe do Executivo no âmbito da competência extraordinária conferida pelo artigo 62 da Lei Maior.

É que, na hipótese da MP não ser apreciada em até 45 dias contados de sua publicação, entrará em regime de urgência em cada uma das Casas do Congresso Nacional, ficando sobrestadas, “todas as demais deliberações legislativas da Casa em que estiver tramitando” (art. 62, § 6º, da CF/88).

Na prática, as pautas de trabalhos das sessões legislativas ficam trancadas em razão da desenfreada edição de MPs pelo governo e, por consequência, inibe a função precípua do Congresso Nacional: a de legislar. A consequência imediata dessa anomalia institucional é o desequilíbrio entre as funções estatais, em evidente afronta ao postulado da separação de poderes preconizado pelo Barão de Montesquieu no clássico “Do Espírito das Leis” e erigido à categoria de princípio fundamental da República Federativa do Brasil (art. 2º da CF/88).

Por tal razão, o presidente da Câmara dos Deputados, Michel Temer, formalizou entendimento, na Sessão Plenária de 17/3/2009, de que as propostas de emenda à Constituição e os projetos de lei complementar, decretos legislativos e resoluções poderão ser votados em sessões extraordinárias, mesmo que a pauta esteja trancada por MPs nas sessões ordinárias.

Segundo a tese do professor Temer, como as medidas provisórias só podem dispor sobre temas atinentes a leis ordinárias (art. 62 da CF), o sobrestamento das deliberações legislativas previsto no artigo 62, parágrafo 6º, da Constituição, só se aplica aos projetos de lei ordinária. Argumenta, mais, que a expressão “todas as demais deliberações legislativas” contida no referido dispositivo constitucional, deve ser interpretada de forma sistêmica e restritiva, pois o poder de legislar do Presidente da República é excepcional.

À ocasião, de modo a afastar uma interpretação literal do texto, imaginou a seguinte situação: “se hoje estourasse um conflito entre o Brasil e um outro país, e o presidente mandasse uma mensagem para declarar a guerra, nós não poderíamos expedir o decreto legislativo, porque a pauta está trancada até maio. Então, nós mandaríamos avisar: só a partir do dia 15 ou 20 de maio nós vamos poder apreciar esse decreto legislativo”.

Ora, como bem lembrou Karl Larenz em sua “Metodologia da Ciência do Direito”, a “interpretação literal” de dispositivos constitucionais constitui apenas a primeira etapa do processo hermenêutico (interpretativo) não podendo prejudicar as suas demais fases. Portanto, com razão o presidente da Câmara dos Deputados ao afastar a interpretação meramente literal do citado dispositivo constitucional.

Importa ressaltar que o decano do Supremo Tribunal Federal, ministro Celso de Mello, em decisão monocrática de 27/3/2009, nos autos do MS 27.931-MC/DF, impetrado pelos deputados federais Fernando Coruja (PPS), Ronaldo Caiado (DEM) e José Aníbal (PSDB) contra referido ato do Presidente da Câmara, indeferiu o pedido liminar e confirmou, em juízo de cognição sumária, a nova interpretação do artigo 62, parágrafo 6º, da Constituição.

Com efeito, a fórmula interpretativa adotada pelo presidente da Câmara dos Deputados, em reação legítima ao domínio hegemônico, pelo presidente da República, sobre a pauta legislativa, faz instaurar, nas palavras do ministro Celso de Mello, “verdadeira práxis libertadora do desempenho, por essa Casa do Congresso Nacional, da função primária que, histórica e institucionalmente, sempre lhe pertenceu: a função de legislar”.

Portanto, a nova interpretação do artigo 62, parágrafo 6º, da Constituição, lastreada no princípio da separação dos poderes, pode marcar o renascimento do Poder Legislativo que se encontra em estado de letargia institucional ante a compulsória edição de MPs pelo Presidente da República. Que o plenário do Supremo Tribunal Federal assim entenda!