Comissão Especial de Promoção da Igualdade Racial presta homenagem a Cléia Costa dos Santos
“Eu só estou aqui porque sou fruto da minha ancestralidade.”
Este projeto tem como objetivo analisar a trajetória pessoal, acadêmica e histórica de Cléia Costa dos Santos, a fim de atribuir uma homenagem traçando um perfil contextual-histórico através de uma perspectiva feminista. Falar do sucesso profissional- e não somente deste- de uma mulher negra, é compreender que o processo discriminatório sofrido por essa mulher em momento nenhum deixou de existir por conta das suas conquistas alcançadas, acima de tudo, é entender que para o Julho das Pretas em 2020 homenagear Cleia Costa foi preciso uma série de resistências vindas anterior a ela, tal qual Cléia fala durante a entrevista a importância dos seus ancestrais, sendo pais, avós, irmãs, entre outros.
Não se cabe enxergar a trajetória de Cleia como horizontal, essa homenagem é sobre como uma mulher negra encontra nas interseções da sua identidade uma forma de contribuir para a luta e o sucesso dos seus semelhantes.
Cléia Costa dos Santos, nascida em 1962, concluiu grande parte dos seus estudos em uma escola pública no bairro do IAPI, onde também residia com a sua família, pessoas que ela se lembra com admiração como grandes responsáveis pelo seu desenvolvimento. Quando lhe é perguntado acerca da sua família, Cléia diz que diante de todas as dificuldades, seus pais a influenciaram a conquistar sua independência financeira e ser capaz de definir seus caminhos. Aos 5 anos, durante seu aniversário, ela responde aos seus familiares que quando crescesse gostaria de cuidar da justiça, a partir daí ela atribui o surgimento de uma paixão pelo direito.
Ainda na época do ensino fundamental, devido ao seu desempenho nos estudos, ela passou a cursar dois anos escolares em um só, ou seja, Cléia fez o 4° e 5° ano na escola ao mesmo tempo, graças ao incentivo que recebeu dos seus professores, em particular sua diretora, cujo qual se lembra com muito carinho e ressalta que a confiança atribuída a ela pelos seus professores foi essencial para sua formação, não à toa que Cléia saiu do ensino médio e foi para a universidade com apenas 16 anos, uma grande surpresa para uma mulher negra, vinda de uma família de operários em sua época.
Após o término de suas atividades secundaristas no colégio do IAPI, Cleia graduou-se em Direito pela Universidade Católica de Salvador (UCSAL), formando-se em 1982. Ao lembrar da faculdade, Cléia conta sobre ter sido uma ótima aluna, com notas de 8 à 10, contudo, ao passo em que se destacava na faculdade, ela relembra sobre como o racismo se fez presente em sua trajetória e na vida dos seus colegas negros, falando, por exemplo, sobre como naquela época o direito era um curso muito ligado à tradição- algo que não conseguiu ser totalmente modificado mesmo nos dias de hoje- com poucas oportunidades de trabalho quando você não possuía um “grande sobrenome” no ramo. Durante a entrevista ela narra um momento inicial de sua vida acadêmica em que foi reprovada por um dos professores da UCSAL, algo que, mais tarde, ela percebeu que o motivo da sua reprovação na matéria era inerente ao seu desempenho, suas notas, mas consequência dos ideais racistas do professor, que com seu olhar elitista, não aceitava que jovens negros e negras continuassem estudando na instituições de ensino. Enquanto Cléia lutava dentro da instituição para que sua reprovação fosse desconsiderada, outros alunos negros também eram reprovados “coincidentemente” pelo mesmo professor nas mesmas matérias.
Posteriormente, Cléia diz que a direção da faculdade foi notificada, resultando na demissão do professor, mas frisa sobre como não tinha consciência da gravidade da situação durante a graduação, sobre como ela não se dava conta da perseguição que sofreu por estar cursando o nível superior.
Aos 23 anos, Cleia começou a trabalhar como Procuradora do Estado da Bahia, sendo uma das primeiras mulheres na ocupação do cargo. Nesse momento, é necessário analisar as condições existentes em uma época em que as pautas femininas, no que concerne aos direitos de trabalho e estudos, ainda sofriam pressões de um sistema de opressão patriarcal em meio a um emaranhado de resistências políticas por parte da população feminina. Como dito anteriormente a respeito das condições histórico-políticas durante esse período de sua vida, quando se fala em analisar sua trajetória de forma horizontal, significa colocar a identidade de Cleia como um pilar para seus enfrentamentos. Sendo uma mulher, já é notória as dificuldades que a Dra. se expunha ao assumir um cargo predominantemente masculino na Bahia, contudo, sua autoidentificação (COLLINS, 2016) como negra trouxe consigo uma carga ainda maior a ser enfrentada por ela no âmbito profissional, tendo em vista toda uma estrutura racista que vinha de encontro aos seus objetivos na procuradoria do Estado. Conforme Collins, “a insistência quanto à autodefinição das mulheres negras remodela o diálogo inteiro,” ou seja, se autodefinir é assumir não somente para si sua identidade, mas remodelar a estrutura de poder dentro da própria instituição, nesse caso, dentro da Procuradoria, e rediscutir o diálogo acerca da racialização dentro do mercado de trabalho.
Dentro da Procuradoria, Cléia fala sobre como sua atuação constitucionalista sofreu diversas tentativas de serem invisibilizadas e como nem sempre as implicações machistas e racistas dos seus colegas de trabalho e superiores eram de todo ruim, dessa forma, ela diz que parte das consequências de passar despercebida na Procuradoria lhe dava mais liberdade para desenvolver seus projetos sem estar vinculada aos ideais conservadores do local. É importante entender que Cléia, em momento nenhum, desconhece ou absolve as limitações que lhes atribuíram no trabalho e como este se configurava de forma excludente, mas, ela foi encontrando caminhos de burlar o conservadorismo a partir da reconfiguração dessa invisibilização.
Seus projetos no setor trabalhista e administrativo da Procuradoria eram vistos pelos outros, em sua maioria homens do direito, como muito à frente do seu tempo, muito modernos, dito isso, ela relata sobre um dia em que conversava acerca das mudanças que propunha para a instituição e como isso seria inovador para os trabalhadores, garantindo mudanças inclusive dentro dos sindicatos, quando um dos seus colegas durante uma reunião disse que isso era algo para ser pensado no futuro. Cléia diz que nesse momento ela se dirigiu ao rapaz e lhe disse “ O futuro já chegou e vocês não perceberam,” argumentando sobre o quanto essas mudanças administrativas eram emergentes.
Ao passo em que Cléia obtinha suas conquistas como Procuradora, ela também obteve diversos títulos em especializações e mestrado ao longo dos anos. Após sua graduação pela UCSAL em 1982, Cléia se especializou pela Universidade Estácio de Sá em Direito do trabalho (1983), estudou Processos na Universidade Federal da Bahia (1983-1984), e por fim voltou à UCSAL para sua última especialização anterior ao mestrado, onde estudou Metodologia e Didática do Ensino Superior (2001-2003). Suas especializações abriram caminhos para posteriormente ingressar no mestrado em Políticas Sociais e Cidadania (2009-2011) também na Universidade Católica de Salvador, demonstrando interesse em áreas no que diz respeito à defesa da população e dos trabalhadores, principalmente por sua maioria ser negra.
Cléia afirma que uma das maiores conquistas do Direito foi a capacidade de se perceber o racismo estruturante dentro das relações como um todo, de forma coletiva, para que ele atue como categoria científica de seja combatido da mesma forma, por meio de debates e mudanças constitucionais. Apesar de todas as dificuldades para se manter dentro do debate político, ela sempre priorizou escolhas, independente de serem as melhores no que tange o retorno financeiro, que fossem capazes de oferecer mudanças para os trabalhadores, em sua maioria negros e negras. Cléia teve importante atuação dentro das políticas sociais, “destravando os nós com o diálogo,” como diz a mesma durante a entrevista. Dentre os diversos exemplos decisivos para ela quando se fala sobre suas escolhas profissionais e financeiras, Cléia cita o momento em que deixou de fazer parte do Sindicato dos Bancários para assumir apenas o SINDILIMP (Sindicato dos Trabalhadores em Limpeza Urbana do Estado da Bahia), sob a justificativa de que, quando já não era mais viável continuar com ambos por questões pessoais, ela escolheu aquele que precisava mais do seu trabalho, o mais vulnerável e invisibilizado.
Por sua linha de pesquisa ter sido muito vinculada com a pauta trabalhista, Cléia atuou como advogada no Sindicato dos Bancários e no Sindicato dos Trabalhadores em Limpeza Urbana do Estado da Bahia (Sindilimp-BA), atuando nos bairros periféricos e galgando grandes espaços de valor no que concerne o enfoque nos problemas enfrentados pela classe trabalhadora sindical. Não à toa, o ex-vereador Luiz Carlos Suíca (2016), em sessão solene no Centro de Cultura da Câmara Municipal de Salvador, fez o seguinte elogio a respeito da procuradora “Ela atuou como advogada por muitos anos no Sindicato dos Bancários e no Sindicato dos Trabalhadores em Limpeza Urbana do Estado da Bahia (Sindilimp-BA), onde sempre foi reconhecida pelo pioneirismo em teses humanistas e pela confiança no seu trabalho ético. Os trabalhadores em limpeza são em maioria negros, de bairros periféricos, vítimas de problemas sociais, que Cléia Costa sempre defendeu com muita garra”. Tais palavras foram conferidas à Cléia durante a entrega da medalha Zumbi dos Palmares.
A premiação Zumbi do Palmares tem como objetivo homenagear grandes ativistas da luta antirracista, e em 29 de Setembro de 2016 Cléia conquistou o prêmio por sua atuação no campo do Direito trabalhista, sindicalista e administrativo, sempre visando defender os direitos dos mais vulneráveis. Quando fala sobre o dia de premiação, ela diz sobre a surpresa que teve ao participar de uma mesa totalmente composta por mulheres e em sua maioria negras, algo que ela não esperava quando chegou ao local. A conquista desse prêmio representou para Cléia a resposta de que estava no caminho certo, o momento em que ela pôde se ver pelo olhar de outras pessoas e perceber como estava operando resultados positivos para o lado daqueles que precisavam de voz.
Ao final da entrevista, nossa “Griô” fala sobre suas conquistas com grande orgulho e ressalta que nunca esteve longe da luta racial e trabalhista, que sempre encontrou uma forma de se manter presente defendendo seus ideais e buscando mudanças. Pensando em ingressar em um doutorado mais adiante, ela finaliza dizendo que o “idealismo não impede que a gente alcance nossos objetivo pessoais” afirmando que, mesmo durante sua carreira ativa e em alguns momentos conturbada, ela nunca deixou para trás seus objetivos pessoais, como o desejo de ter filhos, viajar e garantir sua estabilidade, sem que precisasse desistir de lutar pelo próximo e por seus ideais políticos, assim como deixa um conselho para as mais jovens: que elas nunca subestimem suas conquistas pessoais em detrimento das profissionais e que aprendam a manter o equilíbrio entre ambas.
Rafaela Tavares Von Czekus
Membra da Comissão de Promoção da Igualdade Racial da OAB/BA
Dandara Amazzi Lucas Pinho
Presidenta da Comissão de Promoção da Igualdade Racial da OAB/BA