Audiência Pública sobre ação da Rondesp no Cabula lota auditório da OAB-BA
Um debate histórico lotou o auditório da OAB da Bahia na manhã da última quinta-feira (26/02). Com centenas de pessoas, a audiência pública intitulada “A ação da Rondesp no Cabula: limites para o uso da força da Polícia Militar" discutiu questões ligadas à ação da PM na Vila Moisés (Cabula), no dia 06/02, que resultou na morte de 12 homens e ferimentos em outros três, inclusive um policial militar. O enfrentamento de ideias marcou o encontro, que contou com a participação de autoridades públicas, representantes de órgãos governamentais, de movimentos sociais e de associações da Polícia Militar da Bahia.
Na mesa alta, estiveram presentes o presidente da OAB-BA, Luiz Viana Queiroz, o vice, Fabrício de Castro Oliveira, o vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da entidade, Eduardo Rodrigues, o diretor da Escola Superior de Advocacia da OBA-BA e vice-presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos, Luiz Coutinho, o conselheiro seccional Domingo Arjones, o membro da Comissão de Direitos Humanos da seccional baiana, Jerônimo Mesquita, o representante do Conselho Federal da Ordem, Humberto Adami, o Secretário de Justiça do Estado da Bahia, Geraldo Reis, os representantes do MP/BA e da DP/BA, Raimundo Nonato e Bianca Sampaio, respectivamente, os vereadores Hilton Coelho (PSOL) e Sílvio Humberto (PSB), o ex-deputado Capitão Tadeu, a escritora Ana Maria Gonçalves, o professor Samuel Vida, o presidente do Olodum, João Jorge, e o coordenador da campanha "Reaja ou será morto(a)", Hamilton Borges.
“Este foi um verdadeiro marco histórico. A discussão foi tensa, mas muito frutífera, porque trouxe concepções diferentes, com a participação de diversas entidades. Sobre a nossa atuação, o que temos a dizer é que a OAB da Bahia está do lado dos direitos humanos e defende uma política de paz. Toda vez que houver algum excesso inconstitucional, a entidade vai se posicionar de forma crítica e contrária às arbitrariedades”, afirmou Luiz Viana, que lamentou a ausência do secretário de Segurança Pública do Estado, Maurício Barbosa, e de representantes do comando da PM/BA, convidados para o encontro.
Com opinião semelhante, Eduardo Rodrigues ressaltou a importância da mobilização popular na audiência: “O que aconteceu aqui, hoje, foi uma movimentação da sociedade, que se antecipou à ação do Estado. Qualquer ato que culmine com a morte de 12 pessoas deve ser investigado”, disse. “Este é um dia histórico em que o diálogo prevaleceu sobre a força bruta. O único ‘gol’ marcado, aqui, foi o da democracia, o do diálogo a favor da paz”, complementou Dormingo Arjones, em referência ao depoimento do governador Rui Costa, que, em entrevista no Carnaval, comparou a PM/BA a artilheiros, prestes a “marcar um gol”.
Representando o Conselho Federal da OAB, Humberto Adami, Presidente da Comissão Nacional da Verdade sobre a Escravidão Negra da entidade, destacou o número de mortes de jovens negros no país e associou a violência a resquícios da escravidão: “O percentual de mortes da população jovem negra subiu 32%, enquanto o da branca diminuiu. Acreditamos que este é um problema que remonta o tempo da escravidão, daí a iniciativa de o presidente Marcos Vinícius criar uma comissão voltada ao tema”, disse.
Confronto de ideias
Com momentos fervorosos, a audiência foi marcada por diversas manifestações da plateia e algumas interrupções. Enquanto membros das associações da PM/BA contestavam a morte de cinco policiais, só este ano, representantes dos movimentos sociais e autoridades públicas, em referência à tragédia no Cabula, abordaram temas, como a desmilitarização da PM, a ausência de uma política de segurança pública e a necessidade de um debate sobre os autos de resistência: “Existem vários indícios de que essas 12 mortes foram crimes de execução, a exemplo de registros que indicam que aquele grupo já estava sendo monitorado, o que demonstra que existe, sim, pena de morte no Brasil”, afirmou Hilton Coelho.
“A polícia ataca, e o Estado se sente aliviado. Eles não entendem que são massa de manobra, utilizada para sustentar o 'narcoestado', o 'narcoparlamento' e a 'narcomunicação'. Acham que têm o poder, que têm que combater a população, tratar a população negra e pobre como inimiga. E o governador, que é o comandante-chefe da polícia, participa desta situação, passando por cima de todas as prerrogativas legais, através de uma fala desastrosa”, complementou Vilma Reis, presidente do Conselho de Desenvolvimento da Comunidade Negra do Estado da Bahia (CDCN).
Para Samuel Vida, os números da atual violência podem ser comparados a “índices de guerra”: “Precisamos discutir, urgentemente, questões ligadas à segurança pública, como a desmilitarização da polícia e as melhorias das condições de trabalho da própria PM. Apesar de haver essa tensão racial, o que vejo são policiais que, fora do trabalho, também podem tornar-se vítimas da violência direcionada a negros”, ressaltou.
Com opinião semelhante, Hamilton Borges defendeu a igualdade de raça e repudiou a existência de lados opostos entre polícia e sociedade: “Nós precisamos ouvir uns aos outros neste momento. Nesta guerra travada entre dois lados, quem morre são os negros. Policiais não podem ir para bairros pobres e sair combatendo seus próximos. Queremos que haja investigação”, disse. “O Brasil criminalizou a pobreza e a cor, e isto é inaceitável. Espero que, através de mobilizações como esta, possamos reverter esta situação”, complementou Ana Maria Gonçalves.
Na plateia, representantes das associações da PM/BA também tentaram afastar as acusações de uma suposta guerra entre polícia e sociedade civil e defenderam a categoria: “Também fazemos parte da sociedade. Mas bandido tem que ser tratado como bandido. Quando ele comete um ato, tem que ser pego corretamente. Nós fomos convocados para essa situação. Populares ligaram para a polícia, dizendo que 40 homens armados estavam prontos para assaltar um banco. Foram doze policiais, apenas, contra 40 homens. Queremos, sim, apuração, mas que ela seja feita através de um processo imparcial, em que os policiais, desde já, não sejam execrados e nem prejudicados”, afirmou o soldado Santa Rita, diretor administrativo da Associação dos Policiais e Bombeiros da Bahia (Aspra).
A estudante Nívea de Souza, do Bacharelado Interdisciplinar em Artes da Universidade Federal da Bahia (UFBA), classificou como “idiotice” a tentativa de restringir o caso a uma bipolarização entre policiais e periferia: “Cidadão não está acima de ninguém. Policiais não são melhores nem maiores que ninguém. Vi muita gente se identificando como representante da associação tal ou do movimento tal, mas não vi ninguém dizendo 'somos todos seres humanos'. Foram 12 jovens mortos, e eu pergunto: algum de vocês sabe o nome deles? Vocês sabem os nomes dos cinco PMs mortos?", instigou Nivea, arrancando calorosos aplausos da plateia.
Com discurso polêmico, Capitão Tadeu também protagonizou um momento emblemático na audiência. Ao afirmar que “é preciso esperar a apuração dos fatos, para saber se houve crime ou não”, o ex-deputado provocou uma série de protestos dos movimentos sociais. Em resposta, o capitão classificou os atos como demonstrações de preconceito, pelo fato de não ser negro: “Apenas estou defendendo a lei e, ao defendê-la, estou sendo vítima de racismo. Não tenho culpa de ser branco”, ressaltou.
Apuração do caso
Representando o atual governador, Rui Costa, o secretário Geraldo Reis falou que o “caso específico do Cabula será investigado pelo Estado”: “Acho que toda e qualquer ação ilegal da polícia deve ser apurada. Agendamos uma reunião com os movimentos sociais e o governador para o próximo dia 12. Além disso, queremos propor a criação de um Fórum de Diálogo, com a participação de várias entidades, para discutir a segurança pública. Não podemos transformar essas mortes numa guerra de negros contra negros”, disse.
O promotor Raimundo Nonato afirmou que o Ministério Público criou um grupo especial para acompanhar os desdobramentos do caso: “O MP/BA está presente na apuração, participando das investigações, através de um grupo de cinco promotores do Controle Externo da Atividade Policial, que vai acompanhar as perícias e fazer a reconstituição dos crimes”, destacou.
A representante da Defensoria Pública, Bianca Sampaio, também afirmou que a entidade irá acompanhar os desdobramentos da ação: “A DP/BA está atenta ao caso. A conduta destes policiais não pode ser tomada como auto de resistência. Ela tem que ser investigada. Por isso, nos colocamos à disposição, para todos aqueles que queiram apurar o caso, inclusive para as famílias das vítimas”, ressaltou.
Além de confirmar sua participação na reunião com o governador, no dia 12, Luiz Viana, representando a OAB da Bahia, comprometeu-se a realizar duas novas audiências: uma sobre o mesmo tema, realizada em espaço maior, atendendo a pedidos de quem não conseguiu participar do encontro, e outra, para discutir a morte dos cinco policiais, atendendo a pedidos das associações da PM/BA. Além disso, o presidente confirmou a criação de duas novas comissões na seccional baiana: a Comissão Nacional da Verdade sobre a Escravidão Negra, já existente no Conselho Federal, e outra, voltada à apuração do caso no Cabula.
Foto: Angelino de Jesus (OAB-BA)