“Nós Somos Barrados No Baile 1”: Sobre O Decreto Nº 483 De 22 De Agosto De 2019
Por Camila Garcez*
Os praticantes de religião de matriz africana estão em marcha há séculos e a escolha pelo Decreto nº 483 de 22 de agosto de 2019, que dispõe sobre o uso de trajes nas dependências do Poder Judiciário do Estado da Bahia, não se deu de forma aleatória. A porta de entrada dos órgãos públicos baianos se tornou local de impedimento para religiosas/os de matriz africana quando estão com o orí (cabeça) 3 coberto.
Essa proibição de entrada em prédios imponentes do sistema de justiça, traz consigo a simbologia de que as pessoas não nos comportam nos espaços, enquanto negros/as e praticantes de religião afro-brasileira. Para Sílvio Almeida, “o que se pode verificar até então é que a concepção institucional do racismo trata o poder como elemento central da relação racial”.
Na Bahia, tivemos a publicização de alguns casos que deixaram as redes sociais em polvorosa. A proliferação das plataformas digitais tem sido aliada em casos de violações de direitos. Se antes éramos vilipendiados/as e o nosso grito não ecoava tanto, atualmente, um pequeno vídeo, um relato, um desabafo, percorre as redes e muita gente tem acesso, o que contribui para que não fiquemos no anonimato.
Os casos ocorridos nas dependências dos fóruns não são fatos isolados, na verdade, são partes da estrutura do sistema. Percebam que antigamente, os cultos afro-brasileiros precisavam de registro policial, pagamento de taxas de licença para funcionamento e estavam sujeitos aos controles das autoridades.
E hoje a perseguição continua. A menina de 11 anos leva uma pedrada na cabeça, jogam sal na pedra de Xangô por ato de intolerância e nós, adeptos e adeptas recorrentemente somos impedidos/as de cobrir o nosso orí nos espaços públicos.
O art. 5º da Constituição Federal, mais precisamente no inciso VI, diz que é inviolável a liberdade de consciência e de crença, bem como no inciso VIII versa que ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, resumidamente.
Aqui, no Estado da Bahia, temos o Estatuto da Igualdade Racial e de Combate à Intolerância Religiosa (Lei13.182/2014) que prevê em seu artigo 53 que o Estado promoverá a adequação dos serviços públicos ao princípio do reconhecimento e valorização da diversidade da diferença racial, religiosa e cultural.
Quando um órgão público não prepara o funcionário para saber distinguir o uso de um boné para proteção do orí, em virtude de obrigação religiosa, o problema é estrutural e define valores de acordo com o fenótipo e cultura das pessoas.
Os regimentos institucionais precisam adequar-se à sociedade. Se nós temos uma religião em que os iniciados precisam cobrir suas cabeças, as regras impostas nos espaços públicos que versam a proibição da utilização de coberturas em geral, precisam comportar exceções. Falando em adequação, assim o fez o Tribunal de Justiça da Bahia com a publicação do Decreto nº 483 de 22 de agosto de 2019.
Registramos que a publicação desse Decreto não aconteceu sem que houvesse luta. O papel atuante da OAB/BA por meio da Comissão Especial de Combate à Intolerância Religiosa 8 e de toda a sociedade civil, foi imprescindível nesse processo, demonstrando que não podemos perder a fé nas instâncias formais de poder.
Todo e qualquer ato que atente contra o exercício da liberdade religiosa, constitucionalmente assegurado, deve ser denunciado. A responsabilização por esses atos está tanto na seara administrativa, com instauração de processos administrativos disciplinares, dependendo do órgão, bem como responsabilização civil e criminal, no que couber.
Saliente-se que não vivemos tempos difíceis agora, o racismo não é algo novo, o racismo é algo que está sendo visibilizado graças à conscientização, união e, sobretudo, nossa resistência.
Que tenhamos sempre essa força ancestral para enfrentar o racismo e a intolerância religiosa, e que possamos continuar em marcha para mudar as estruturas, afinal de contas, somos sementes!
*Membro da Comissão Especial de Combate à Intolerância Religiosa da OAB-BA