"No Estado democrático de direito combate-se a criminalidade de todo tipo e potencial ofensivo com a Constituição e as leis dela consequentes"
Confira o discurso do conselheiro federal da OAB pelo Rio de Janeiro, Siqueira Castro, durante o Colégio de Presidentes de Seccionais da OAB que acontece em Foz do Iguaçu, no Paraná, nesta quinta e sexta-feira (05 e 06):
A decisão de ontem no Supremo Tribunal entristece a todos quantos acreditam que a jurisdição constitucional é ou pode ser um instrumento civilizatório de afirmação de direitos fundamentais e de avanço social e democrático. Há decisões do STF que decepcionam. Essa não é uma delas. Há decisões do STF que decepcionam profunda e irreversivelmente. Essa é uma delas.
Rasgou-se sem cerimônia ou escrúpulo um dos preceitos mais claros, mais categóricos e insofismáveis da Constituição: ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença condenatória. Não há presunção ficta de coisa julgada. Só a superação integral e definitiva de todas as instâncias recursais a materializa. Nesse instante, inclusive, inicia-se a fluência do prazo para a ação própria de desconstituição da coisa julgada, via revisão criminal.
O mais grave é que os argumentos determinantes do julgado de ontem são extra constitucionais, além de pífios, e desconsideram a letra indesviável da Constituição (acúmulo de recursos, morosidade da Justiça, receio do implemento da prescrição, inconvincentes estatísticas da jurisprudência do STJ e do STF em reversão de julgamentos das instâncias criminais ordinárias, impunidade de criminosos, estímulo à corrupção, clamor social, campanha da mídia etc.). Ora bem: no Estado democrático de direito combate-se a criminalidade de todo tipo e potencial ofensivo com a Constituição e as leis dela consequentes. Pode-se - se for o caso e do interesse da nação - reformar a Constituição e alterar as leis substantivas e adjetivas que a complementam. O que não se pode é mitigar a presunção suprapegal de inocência e trivializar o direito fundamental à liberdade, um e outro sublimado em cláusula pétrea. Ontem, a Constituição democrática de 1988 - na antevéspera da celebração de seus 30 anos de vigência- não foi apenas violada. Foi estuprada. O devido processo constitucional foi ignorado pela escassa maioria dos julgadores. Com base na falaciosa argumentação vencedora, daqui para a frente tudo pode acontecer e encontrar justificativas atécnicas e meta constitucionais. Algum ministro pseudoconstitucionalista, ou a maioria deles, poderá dizer e votar (o que é pior) que a igualdade de raça não é bem assim..., ou que a igualdade de gênero também não é bem assim... Mas - e aí vai a janela de esperança contra a desilusão destes tempos - os equívocos de uma Corte Constitucional são corrigíveis pela própria Corte, até por via do fenômeno da mutação constitucional (como já ocorreu entre nós variadas vezes) ou por via de emenda constitucional corretiva de interpretações infelizes da Constituição perpetradas pelo seu intérprete oficial e final, conforme se passou por quatro vezes nos Estados Unidos da América.
Tal se deu, por exemplo, com a promulgação da 14a. Emenda da Constituição americana, destinada a revogar a famigerada decisão no caso Dreadscot (de que o negro não era considerado cidadão para desfrutar do acesso às Cortes de Justica). O mesmo se deu para revogar a série de casos que encampavam a chamada doutrina Plessley ("equal but separated"), de que o negro não possui direito à igualdade racial integrada no espaço público e privado, e que acabou finalmente revogada em 1954 no julgamento pela Suprema Corte estadunidense no festejado caso Brown versus Board of Education. Por força dessa bem inspirada mutação constitucional, as crianças americanas, brancas e negras, passaram a conviver de forma integrada e obrigatória no sistema escolar, como condição mínima de igualdade na promoção da educação integrada e igualitária no convívio social. Falou-se ontem que se estava a julgar um Habeas Corpus (quiçá apenas mais um Habeas Corpus) e que o ato coator (a decisão do STJ) não seria abusiva ou maculada de ilegalidade e que, bem por isso, não se deveria ou não se poderia exercer a jurisdição constitucional das liberdades. Nada mais absurdo é inacreditável. Qualquer juiz no Brasil, tanto mais uma Corte guardiã da Constituição por determinação expressa da nossa Carta Política de 88, tem o dever de exercer a jurisdição constitucional para a afirmação dos direitos fundamentais em qualquer processo ou estágio processual, seja nas ações cíveis, criminais, trabalhistas (controle difuso de constitucionalidade) ou nas vias de controle concentrado da supremacia da Constituição. Enfim, tempos sombrios nos espreitam. O CFOAB, por iniciativa do nosso aguerrido e eminente Presidente Cláudio Lamachia, com a aprovação unânime de todos os estimados Conselheiros Federais, já bem antes do julgamento do ex-Presidente Lula pelo TRF da 4a Região, houve por bem ajuizar a ADC 44, a fim de invalidar a decisão do STF de 2016, que autorizara o início da execução do cumprimento da pena antes do trânsito em julgado da sentença condenatória. Cumprimos, em boa hora , o nosso dever. Teremos, ainda, e teremos sempre - juntos e coesos em torno dos ideários constitucionais e legais da advocacia brasileira - muito trabalho e contribuições a oferecer ao nosso sofrido pais nestes penosos tempos de crise e desarranjo moral e institucional. Que Deus nos ilumine e abençoe o Brasil. Seguimos juntos.
Siqueira Castro
Conselheiro Federal da OAB pelo Rio de Janeiro
O mais grave é que os argumentos determinantes do julgado de ontem são extra constitucionais, além de pífios, e desconsideram a letra indesviável da Constituição (acúmulo de recursos, morosidade da Justiça, receio do implemento da prescrição, inconvincentes estatísticas da jurisprudência do STJ e do STF em reversão de julgamentos das instâncias criminais ordinárias, impunidade de criminosos, estímulo à corrupção, clamor social, campanha da mídia etc.). Ora bem: no Estado democrático de direito combate-se a criminalidade de todo tipo e potencial ofensivo com a Constituição e as leis dela consequentes. Pode-se - se for o caso e do interesse da nação - reformar a Constituição e alterar as leis substantivas e adjetivas que a complementam. O que não se pode é mitigar a presunção suprapegal de inocência e trivializar o direito fundamental à liberdade, um e outro sublimado em cláusula pétrea. Ontem, a Constituição democrática de 1988 - na antevéspera da celebração de seus 30 anos de vigência- não foi apenas violada. Foi estuprada. O devido processo constitucional foi ignorado pela escassa maioria dos julgadores. Com base na falaciosa argumentação vencedora, daqui para a frente tudo pode acontecer e encontrar justificativas atécnicas e meta constitucionais. Algum ministro pseudoconstitucionalista, ou a maioria deles, poderá dizer e votar (o que é pior) que a igualdade de raça não é bem assim..., ou que a igualdade de gênero também não é bem assim... Mas - e aí vai a janela de esperança contra a desilusão destes tempos - os equívocos de uma Corte Constitucional são corrigíveis pela própria Corte, até por via do fenômeno da mutação constitucional (como já ocorreu entre nós variadas vezes) ou por via de emenda constitucional corretiva de interpretações infelizes da Constituição perpetradas pelo seu intérprete oficial e final, conforme se passou por quatro vezes nos Estados Unidos da América.
Tal se deu, por exemplo, com a promulgação da 14a. Emenda da Constituição americana, destinada a revogar a famigerada decisão no caso Dreadscot (de que o negro não era considerado cidadão para desfrutar do acesso às Cortes de Justica). O mesmo se deu para revogar a série de casos que encampavam a chamada doutrina Plessley ("equal but separated"), de que o negro não possui direito à igualdade racial integrada no espaço público e privado, e que acabou finalmente revogada em 1954 no julgamento pela Suprema Corte estadunidense no festejado caso Brown versus Board of Education. Por força dessa bem inspirada mutação constitucional, as crianças americanas, brancas e negras, passaram a conviver de forma integrada e obrigatória no sistema escolar, como condição mínima de igualdade na promoção da educação integrada e igualitária no convívio social. Falou-se ontem que se estava a julgar um Habeas Corpus (quiçá apenas mais um Habeas Corpus) e que o ato coator (a decisão do STJ) não seria abusiva ou maculada de ilegalidade e que, bem por isso, não se deveria ou não se poderia exercer a jurisdição constitucional das liberdades. Nada mais absurdo é inacreditável. Qualquer juiz no Brasil, tanto mais uma Corte guardiã da Constituição por determinação expressa da nossa Carta Política de 88, tem o dever de exercer a jurisdição constitucional para a afirmação dos direitos fundamentais em qualquer processo ou estágio processual, seja nas ações cíveis, criminais, trabalhistas (controle difuso de constitucionalidade) ou nas vias de controle concentrado da supremacia da Constituição. Enfim, tempos sombrios nos espreitam. O CFOAB, por iniciativa do nosso aguerrido e eminente Presidente Cláudio Lamachia, com a aprovação unânime de todos os estimados Conselheiros Federais, já bem antes do julgamento do ex-Presidente Lula pelo TRF da 4a Região, houve por bem ajuizar a ADC 44, a fim de invalidar a decisão do STF de 2016, que autorizara o início da execução do cumprimento da pena antes do trânsito em julgado da sentença condenatória. Cumprimos, em boa hora , o nosso dever. Teremos, ainda, e teremos sempre - juntos e coesos em torno dos ideários constitucionais e legais da advocacia brasileira - muito trabalho e contribuições a oferecer ao nosso sofrido pais nestes penosos tempos de crise e desarranjo moral e institucional. Que Deus nos ilumine e abençoe o Brasil. Seguimos juntos.
Siqueira Castro
Conselheiro Federal da OAB pelo Rio de Janeiro