De golpe a golpe: a ditadura militar e as mulheres
Precisarmos, em 2019, debater a autorização feita pelo presidente Jair Bolsonaro para a comemoração do golpe militar de 1964 representa, em si, um sinal de que estamos nos distanciando, a cada dia, do tão sonhado ideal democrático prometido pela Constituição Federal de 1988. É oportuno destacar que, entre os 50 membros da Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, responsáveis pela elaboração do anteprojeto que deu origem ao texto constitucional, havia 48 homens brancos, 2 mulheres brancas e nenhuma pessoa negra ou indígena. Agora nos vemos diante da triste tarefa de defesa de um texto constitucional fruto de uma sub-representação popular e que, ao longo dos anos, em vez de ter ampliado a participação social para a garantia de uma substancial aproximação democrática, afundou-se na inefetividade das garantias previstas e na ofensa, seja por particulares, seja pelo próprio Estado, dos direitos fundamentais ali inscritos.
O cenário atual é prova viva de que não aprendemos, ou de que aprendemos muito pouco, com a transição democrática (inacabada) iniciada nas décadas passadas. É por isso que aqui afirmamos a necessidade de olhar para o nosso passado de torturas, genocídios e assassinatos, a fim de compreendermos e visibilizarmos a manutenção de tais práticas nos dias de hoje. A Comissão Nacional da Verdade consistiu órgão temporário cuja criação foi proposta em 2010, por meio de projeto de lei apresentado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que tramitou em regime de urgência até ser sancionada a Lei nº 12.528 de 2011 pela presidenta Dilma Rousseff. As atividades da Comissão foram encerradas em 10 de dezembro de 2014, e hoje a divulgação de seus trabalhos é mantida pelo Centro de Referência Memórias Reveladas, do Arquivo Nacional, podendo ser facilmente acessada por qualquer cidadão. Os seus estudos foram estruturados em diferentes segmentos, dentre eles o grupo de trabalho “ditadura e gênero”, e aqui nos servem de fonte para compreendermos a importância das mulheres na escrita histórica da democracia.
O regime ditatorial brasileiro reservou especial crueldade e violência contra as mulheres que militaram pela defesa da democracia. O desafio aos papéis sociais de gênero na troca do ambiente privado pela ocupação dos espaços públicos nas articulações políticas em oposição à ditadura resultou em um abuso estatal vinculado não só à condição de “subversivas”, mas, especialmente, por serem mulheres. São inúmeros os relatos de violência sexual dentre os crimes contra a humanidade praticados pelos militares brasileiros contra nossas defensoras da igualdade e soberania popular. Estupros e outras agressões sexuais, inclusive com o perverso uso de animais, foram práticas recorrentemente utilizadas como instrumentos estatais de dominação voltados ao desempoderamento feminino. A identidade das mulheres militantes foi desfigurada ao longo da ditadura militar a partir de imagens socialmente tidas como desviantes - prostitutas, adúlteras, esposas e mães desvirtuadas etc. Mesmo as mulheres que se mantiveram no espaço privados de suas casas foram especialmente atingidas pela ditadura militar pela simples condição feminina. Como destacam os relatórios da CNV, os homens considerados inimigos eram atingidos a partir de“suas” mulheres e filhas, sendo o direcionamento das agressões estatais às famílias dos presos políticos especialmente voltado contra as mulheres.
Então, se atual conjuntura política nos impele a rememorar a ditadura militar, que seja a nossa tarefa celebrar a memória de todas as mulheres e homens que lutaram pela democracia, pela liberdade e pela igualdade. Que o dia de hoje seja um momento de prestarmos nossa homenagem às mulheres e homens que morreram; aos que sobreviveram à violência física e psicológica; aos desaparecidos políticos; às famílias direta ou indiretamente agredidas; aos camponeses, indígenas, sindicalistas e pessoas negras especialmente vulnerabilizados; aos parlamentares combativos; aos jornalistas que não se calaram; aos artistas que desafiaram a censura; aos professores, estudantes, e servidores que não se intimidaram; às organizações religiosas que lutaram; aos militares que se opuseram à ditadura militar; às advogadas e advogados que defenderam a democracia e a todas e todos que, de alguma maneira, militaram pela soberania popular. Que o dia de hoje sempre nos lembre: com tiranos não combinam nossos brasileiros corações.
Daniela Portugal
Presidenta da Comissão da Mulher Advogada da OAB-BA REFERÊNCIAS
BRASIL, Comissão Nacional da Verdade, Relatório - Volume I, Coord. José Carlos Dias; José Paulo Cavalcanti Filho; Maria Rita Kehl; Paulo Sérgio Pinheiro; Pedro Bohomoletz de Abreu Dallari; Rosa Maria Cardoso da Cunha. Brasília: CNV, 2014. __________, Relatório - Volume II, Coord. José Carlos Dias; José Paulo Cavalcanti Filho; Maria Rita Kehl; Paulo Sérgio Pinheiro; Pedro Bohomoletz de Abreu Dallari; Rosa Maria Cardoso da Cunha. Brasília: CNV, 2014. __________, Relatório - Volume III, Coord. José Carlos Dias; José Paulo Cavalcanti Filho; Maria Rita Kehl; Paulo Sérgio Pinheiro; Pedro Bohomoletz de Abreu Dallari; Rosa Maria Cardoso da Cunha. Brasília: CNV, 2014.
Presidenta da Comissão da Mulher Advogada da OAB-BA REFERÊNCIAS
BRASIL, Comissão Nacional da Verdade, Relatório - Volume I, Coord. José Carlos Dias; José Paulo Cavalcanti Filho; Maria Rita Kehl; Paulo Sérgio Pinheiro; Pedro Bohomoletz de Abreu Dallari; Rosa Maria Cardoso da Cunha. Brasília: CNV, 2014. __________, Relatório - Volume II, Coord. José Carlos Dias; José Paulo Cavalcanti Filho; Maria Rita Kehl; Paulo Sérgio Pinheiro; Pedro Bohomoletz de Abreu Dallari; Rosa Maria Cardoso da Cunha. Brasília: CNV, 2014. __________, Relatório - Volume III, Coord. José Carlos Dias; José Paulo Cavalcanti Filho; Maria Rita Kehl; Paulo Sérgio Pinheiro; Pedro Bohomoletz de Abreu Dallari; Rosa Maria Cardoso da Cunha. Brasília: CNV, 2014.