Uma palavra sobre o indulto natalino de 2008
por Alberto Zacharias Toron
A ConJur de 23 de dezembro último, sob o título, “Perdão presidencial: Decreto que dá indulto de Natal a presos é publicado”, estampou matéria dando conta de duas importantes novidades no tema: A primeira é que permite que sejam perdoados (sic) os condenados pelo chamado tráfico privilegiado de drogas — que consiste na oferta eventual de droga, sem objetivo de lucro, a um amigo — desde que não integrem organizações criminosas e preencham uma série de requisitos, a começar pelo bom comportamento.
Outra novidade é o perdão para condenados considerados inimputáveis — doentes mentais, por exemplo — que cumpram medidas de segurança e que, até o Natal, tenham permanecido presos, internados ou submetidos a tratamento ambulatorial por período igual ou superior ao máximo da pena que teriam de cumprir. Nesses casos, os presos serão removidos para hospitais psiquiátricos da rede pública de saúde.
Afora os dois destaques dados pela matéria, poderíamos acrescentar o indulto da pena pecuniária nos termos em que disciplinado pelo artigo 1º, inciso VI: “ao condenado a pena de multa, aplicada cumulativamente com pena privativa de liberdade, desde que não quitada aquela e cumprida a pena privativa de liberdade imposta, até 25 de dezembro de 2008”, que permitiu o desentulhamento da mesa de trabalho de muitos juízes das Varas das Execuções Penais.
Embora aplaudindo a iniciativa presidencial no ponto, deixo de lado nestes comentários a questão relativa aos que estão submetidos à medida de segurança, tema, aliás, tratado com mestria por Eduardo Reale Ferrari no seu valoroso trabalho de mestrado, “Medidas de segurança e direito penal no Estado Democrático de Direito”[1]. Fico apenas com a questão do assim chamado “tráfico-privilegiado” que a nova Lei de Tóxicos, em boa hora, instituiu.
O artigo 8º do decreto de indulto natalino de dezembro último dispõe:
“Os benefícios previstos neste Decreto não alcançam os condenados:
I - por crime de tortura, terrorismo ou tráfico ilícito de drogas, nos termos do artigo 33 da Lei no 11.343, de 23 de agosto de 2006, excetuadas as hipóteses previstas nos parágrafos 2º ao 4º do artigo citado, desde que a conduta típica não tenha configurado a prática da mercancia”.
Por seu turno, o artigo 33 da Lei 11.343/06, que cuida do tráfico ilícito de substâncias entorpecentes, diferencia no seu parágrafo 2º, os casos de indução, instigação ou auxílio a alguém ao uso indevido de drogas, conferindo pena mitigada de um a três anos de detenção. Na seqüência, o parágrafo 3º cuida do cedente eventual, isto é, daquele que comparte com pessoa das suas relações a droga adquirida para uso próprio. A pena neste caso é de 6 meses a um ano de detenção. Por fim, o parágrafo 4º autoriza a redução da pena de 1/6 a 2/3 nos casos definidos no caput do artigo 33 e seu parágrafo 1º, desde que “o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa”.
Nos casos dos parágrafos 2º e 3º do artigo 33 da Lei de Tóxicos, o alcance do indulto parece remoto, bastante restrito, uma vez que o legislador não vedou a concessão do sursis ou a conversão das penas em restritivas de direitos (Constituição Federal, artigo 44). Assim, só mesmo numa hipótese de reincidente encontraríamos alguém no cárcere cumprindo pena por infração aos referidos dispositivos que, ademais, são apenados com detenção e, portanto, sujeitam-se de saída, como regra, ao regime semi-aberto.
O ponto importante está no que atina com as infrações previstas no caput e parágrafo 1º do artigo 33 da Lei de Tóxicos quando o agente esteja nas condições do parágrafo 4º, isto é, seja primário, de bons antecedentes e sem inserção em organização criminosa. Falamos aqui da “mula”, do pequeno passador etc.
À primeira vista pode parecer que todos os condenados por infração ao artigo 33 caput e parágrafo 1º da Lei 11.343/06 estariam abrangidos pelo Decreto de indulto. Não é assim. É que este diploma, de forma expressa, excluiu as situações que envolvam mercancia. Lembremo-nos do artigo 8º, I: “...excetuadas as hipóteses previstas nos parágrafos 2º ao 4º do artigo citado, desde que a conduta típica não tenha configurado a prática da mercancia”. A ressalva constante da parte final restringe muito a incidência do indulto. Afinal de contas, são reduzidas as hipóteses de importação, exportação, remessa, produção, fabricação... que não estejam voltadas para o comércio.
Já advoguei em caso de remessa pelo correio de um usuário para o outro e, também, de irmão que remeteu para o Japão pequena quantidade de maconha ao “mano” que trabalhava como dekassegui no país de seus antepassados e pedira a droga para uso próprio. São casos raros e o primeiro, após não poucos percalços, mereceu, sob a égide a Lei 6.368/76 o enquadramento mais benigno do artigo 16, que cuidava do usuário. O outro, após muitos dissabores para o condenado, culminou com o reconhecimento, no STJ, da figura da tentativa. Mas, vale o registro de que são casos excepcionais. A regra aí parece ser o comércio.
A coisa muda, porém, quando se observa as condutas previstas no parágrafo 1º, do artigo 33, que contempla no inciso II as hipóteses de semeio e cultivo. Aqui não são tão infreqüentes as situações, como a do estudante que planta para uso próprio. Os repertórios de jurisprudência estão carregados de julgados versando sobre o assunto. Idem no que concerne à previsão do inciso III quanto aos casos em que o dono de um apartamento, casa ou sítio, consinta, por exemplo, em que outrem faça uso de drogas no seu interior. Aqui, a facilitação do uso, que merecia sob a égide do artigo 281 do Código Penal um tratamento diferenciado em termos punitivos[2], também pode merecer o enquadramento previsto no parágrafo 4º da Lei de Tóxicos em vigor e, se não houver a prática de mercancia, será, agora, alcançada pelo indulto.
Restrita ou não, a aplicação do decreto natalino no que concerne aos casos do parágrafo 4º do artigo 33 da Lei de Tóxicos representa inegavelmente um grande avanço no que diz com a instituição de uma política criminal penitenciária finamente diferenciada e sintonizada com a lei e valores constitucionais caros como os da correta individualização e humanidade da pena. Assim, permite-se ao juiz da Vara das Execuções dar tratamento distinto a àqueles a quem o legislador expressamente quis apenar de forma mais benigna dadas as condições pessoais do agente. Não era, portanto, sem tempo que o Presidente da República tomasse em conta a situação diferenciada dos que se acham condenados na forma do artigo 33, parágrafo 4º, da lei de drogas e lhes concedesse o indulto natalino. Lamentamos a cláusula final do artigo 8º, inciso I, que restringe o alcance do instituto, excluindo os casos de mercancia, mas é, frise-se, um começo auspicioso na tarefa corajosa e necessária de se tratar estes infratores, também, no âmbito da Execução Penal com mais justiça. Oxalá, com os bons frutos deste Decreto de Indulto, que o próximo não traga a mesma restrição e permita tratar a todos com o mesmo sentimento de justiça.
Seja como for, estava correta a matéria da ConJur quando assinalava que “a concessão do indulto não significa uma saída imediata e em massa dos presos. Cada um dos condenados que se enquadrar no rol de condicionantes deverá formular um pedido e submetê-lo à análise de um juiz. Caberá a ele decidir se o presidiário atende aos requisitos previstos no decreto presidencial e se tem condições de deixar a cadeia”.