Direito Penal deve evitar que garantismo traga impunidade
por Gecivaldo Vasconcelos Ferreira
Relembre-se que se identifica atualmente entre os penalistas aqueles que têm certa tendência para defender um endurecimento da legislação penal, tornando mais severa a cominação das penas e os regimes de cumprimento destas, exigindo a extinção de certos benefícios processuais. Estes se identificam com o chamado Movimento de Lei e Ordem, donde se ramifica, por exemplo, o direito penal do inimigo[1]. São também taxados de punitivistas. Defendem que o Direito Penal deve ser a prima ratio, ou seja, a solução primordial para a maioria dos problemas da sociedade, e ainda, que as garantias do indivíduo sujeito à persecução penal devem ser as mínimas possíveis com vistas a preservar a preponderância do Estado em face dos criminosos. No Brasil, não identificamos nenhum jurista de renome que adote predominante e abertamente esta linha de pensamento em sua forma extremada. Há alguns com claras tendências punitivistas, mas que não chegam, por exemplo, a defender abertamente o direito penal do inimigo.
De outro lado, temos os minimalistas[2], propugnadores da idéia de que o Direito Penal deve ser a ultima ratio, ou seja, somente deve atuar quando as outras disciplinas jurídicas se mostrarem ineficientes para inibir certas condutas, e ainda, exclusivamente naquelas situações onde se identifiquem graves violações a bens jurídicos.
Essa corrente, apesar de não se confundir com o garantismo penal, tem forte identidade com este, pois nela também se sobrelevam as garantias individuais em contraponto ao arbítrio do Estado em matéria criminal.
Os garantistas, conquanto, entendem que o delinqüente deve ser investigado, processado, condenado e punido, porém tudo deve ser feito com respeito às mais amplas garantias inerentes à sua condição humana e de cidadão. A teoria garantista sustenta-se em dez axiomas (GRECO, 2007, v. 1, pp. 12-13), quais sejam:
1 — Nulla poena sine crimine (não há pena sem crime);
2 — Nullum crimen sine lege (não há crime sem lei);
3 — Nulla lex (poenalis) sine necessitate (não há lei penal sem necessidade);
4 — Nulla necessitas sine injuria (não há necessidade sem ofensa);
5 — Nulla injuria sine actione (não há ofensa sem ação);
6 — Nulla actio sine culpa (não há ação sem culpa);
7 — Nulla culpa sine judicio (não há culpa sem processo);
8 — Nullum judicium sine accusatione (não há processo sem acusação);
9 — Nulla accusatio sine probatione (não há acusação sem provas);
10 — Nulla probatio sine defensione (não há prova sem defesa).
Dada essa noção superficialíssima, percebe-se que atualmente existem, basicamente, juristas defensores de um Direito Penal mais atuante e rigoroso, mesmo que isto acarrete a preterição de alguns direitos individuais quando houver interesse coletivo exigindo rápida e exemplar punição, enquanto há outros que se enfileiram na exigência de um Direito Repressivo mais humano, onde haja a efetiva sanção ao infrator, mas com critérios rígidos de respeito à dignidade da pessoa humana e que garantam um julgamento justo com ampla garantia dos direitos individuais, mesmo que estes venham a conflitar com o interesse estatal.
Adicionalmente, deve-se ficar patente que essa discussão não se limita aos penalistas, mas sim engaja todos os atores sociais.
Conversando com um amigo ou parente, por exemplo, você logo notará para qual lado ele pende, se para o vértice do punitivismo ou da doutrina garantista, embora muitas vezes tais interlocutores nem saibam que existem estas construções teóricas. Sejam políticos, jornalistas, trabalhadores braçais ou qualquer outro cidadão, se estiver antenado com os acontecimentos sempre terá uma opinião pessoal sobre os rumos a serem buscados no tocante à legislação penal. Alguns, por exemplo, defendem a pena de morte, prisão perpétua, redução de menoridade penal etc., outros, em front diverso, falam, por exemplo, a favor da liberação das drogas, dos “jogos de azar” e da exploração da prostituição. Fato é, contudo, que todos os cidadãos conscientes têm uma opinião sobre o tema, e que reflete sua tendência.
Como já adiantamos no preâmbulo, se formos consultar os mais renomados penalistas pátrios, constataremos, até onde é de nosso conhecimento, que praticamente todos são simpáticos ao garantismo, mesmo que alguns se oponham a determinados nuances deste, considerando a sua doutrina básica. Na mesma direção o pensamento dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, nossa Corte Maior. Aliás, não poderia ser diferente, pois o STF, na condição de guardião da Constituição Federal somente poderia assumir uma postura garantista, visto ser esta uma característica marcante de nossa Carta Magna, bem realçada para deixar clara a transmudação de um Estado de Exceção para um Estado Democrático de Direito.
Garantismo e desigualdade social
A visão que temos de garantismo penal é que nele se insere o anseio de proteger qualquer cidadão das arbitrariedades estatais. E quem mais precisa dessa proteção é justamente aquele desprovido de qualquer influência econômica, social ou política que lhe permita defender-se com suas próprias forças diante de uma ação estatal injusta.
Pelo prisma ora delineado, teremos basicamente dois tipos de investigados, réus e condenados: um sem qualquer poder (seja econômico, político ou de qualquer outra natureza) e outro que o possui.
Dentro do modelo teórico básico garantista, a ambos deveria ser outorgada a proteção incondicional aos seus direitos fundamentais enquanto sujeitos da persecução penal. Daí Ferrajoli (2006, p. 836) afirmar que:
Podemos, neste ponto, redefinir os direitos fundamentais, em contraposição a todas as outras situações jurídicas, como aqueles direitos cuja garantia é necessária a satisfazer o valor das pessoas e a realizar-lhes a igualdade. Diferentemente dos direitos patrimoniais – do direito de propriedade aos direitos de crédito -, os direitos fundamentais não são negociáveis e dizem respeito a “todos” em igual medida, como condições da identidade de cada um como pessoa e/ou como cidadão. É esta sua igualdade e, ao mesmo tempo, este seu nexo com os valores da pessoa humana que consente em identificar-lhes a soma com a esfera da tolerância e as suas violações com a esfera do intolerável. Grifos nossos
Essa proteção, teoricamente, deveria ser garantida independentemente de qualquer outra variável personalíssima (vinculada especialmente a sujeito determinado). Quer dizer: por essa linha, o máxime respeito aos direitos fundamentais deveria ser garantido pelo Estado sem que o sujeito passivo da ação estatal criminal precisasse lançar mão de seus recursos financeiros, sua influência social etc.; pois a partir do momento em que há a exigência da movimentação dessas variáveis a igualdade se relativiza, transformando-se em desigualdade.
É isso que ocorre no Brasil. Não temos receio de errar em afirmar que possuímos uma legislação que admite, em boa parte, uma interpretação garantista (decorrente da própria CF), mesmo que o garantismo seja, em algumas situações, encontrado apenas nas entrelinhas da lei. Para acessar ao efeito prático dessas “entrelinhas”, contudo, faz-se necessária a movimentação das variáveis enunciadas, principalmente no sentido de ter uma boa defesa técnica.
Até esse ponto, concordamos que o nivelamento deveria ser por cima; ou seja, não se pode negar às pessoas bem posicionadas econômico-socialmente o gozo de seus direitos fundamentais simplesmente porque os pobres e miseráveis têm os seus vilipendiados. Ao contrário, deve-se brigar para que os primeiros mantenham a fruição dos direitos que já lhe são acessíveis e para que os segundos também consigam ter acesso aos mesmos.
O supergarantismo
Há, em nosso país, alguns fatores preponderantemente peculiares a serem considerados quando o assunto é impunidade:
a) estrutura judiciária, policial, acusatória e carcerária ineficiente;
b) miserabilidade de relevante parcela da população;
c) grande concentração de renda e poder nas mãos de poucos;
d) legislação criminal ambígua;
e) permissividade histórica em face de alguns delitos.
Esse fatores devem ser confrontados com o postulado garantista que almeja repelir violações a direitos fundamentais de investigados, réus e condenados.
Primeiramente, é sabido por todos que a polícia não consegue descortinar grande parte dos ilícitos penais; o Ministério Público e o Judiciário não conseguem exercer com celeridade o papel processual desejável para se alcançar justas e tempestivas condenações; o sistema carcerário é um caos, revelando-se as prisões verdadeiras “escolas do crime”.
Temos, ainda, uma população dividida em uma casta de intocáveis, uma classe média (medianos) que encara, em sua maioria, com hipocrisia os problemas sociais (e que tenta forçosamente entrar para a categoria dos intocáveis) e uma grande parcela da população para qual a negação de qualquer direito efetivo é sua realidade, os desafortunados.
Não se trata aqui de uma versão adaptada ao Direito Penal do antigo discurso marxista da guerra de classes sociais. Trata-se, com certeza, do espelho de nossa realidade atual, visualizada somente por quem tem vontade e sensibilidade de enxergar, pois para muitos o melhor é fingir que não vê para não se constranger.
Os intocáveis não dependem do Estado para quase nada, isto quando eles próprios não são a manifestação do Estado (algumas elevadas autoridades dos poderes da República), ocasião em que a estrutura deste existe para lhes servir. O Direito Penal para tais pessoas é algo que se resume às páginas policiais dos jornais, onde seus nomes, de seus parentes e amigos provavelmente nunca serão escritos.
Os medianos, já conseguindo suprir com recursos próprios a maioria de suas necessidades básicas (por exemplo, nas áreas de saúde, educação e lazer), necessitam do Estado predominantemente para fazer face à sua carência na área de segurança. Visualizam o poder estatal, contudo, nessa seara, como uma força que pode agir somente em sua defesa e nunca contra si. Daí ser corriqueiro assistirmos esse tipo de pessoas se demonstrarem extremamente revoltadas, por exemplo, quando são abordadas pela polícia em situações comprometedoras (usando drogas, dirigindo embriagadas, brigando em festas etc.).
Os desafortunados, a seu turno, se inserem no dia-a-dia do crime. Operação policial na favela, visita ao parente preso e peripécias do filho delinqüente, por exemplo, são rotinas de muitos dessa classe. O crime é vizinho dos mesmos, quando não está dentro de suas próprias casas. O convite ao ilícito é diário e insistente.
Ao contexto estrutural (policial, judicial, acusatório e carcerário) e social ilustrados, adicione-se a legislação criminal ambígua e a cultura de que “o mundo é dos espertos”. Daí se extrai a fórmula do caos em que vivemos em termos de criminalidade.
Dentro desse contexto surge o que denominamos de supergarantismo.
O garantismo emerge da boa dogmática e é encontrado no âmago da legislação, ou no máximo nas entrelinhas desta, conforme já evidenciamos anteriormente.
O supergarantismo vai além. Somente os intocáveis conseguem lançar mão dele. Aglutina o conjunto de práticas temerárias, interna e faticamente legitimadas sob a forma de exercício das amplas prerrogativas de defesa permitidas dentro do Estado Democrático de Direito.
Corporifica-se, por exemplo, no uso dos seguintes expedientes:
a) contratação de grandes bancas de advocacia, que são as únicas capazes de manejar “recursos especialíssimos”, como os “embargos auriculares” e “embargos familiares”;
b) manipulação da mídia;
c) perseguição velada às autoridades públicas responsáveis pela investigação e processo;
d) patrocínio de lobby para criação de leis penais mais brandas pertinentes a certos delitos.
Tudo é feito dentro da lei, sob o auspício da Constituição Cidadão, segundo dizem os renomados juristas (alguns dos quais com salários pagos, oficial ou oficiosamente, pelo intocável interessado no caso concreto).
Este supergarantismo, invenção exclusivamente brasileira, com o qual ferrajoli nunca sequer sonhou, nossos medianos aspiram um dia ter acesso, enquanto que os desafortunados não conseguem nem perceber que o mesmo existe, sendo-lhe negado o direito de pelo menos sonhar com o mesmo. É ele que está na raiz da proteção (atualmente considerada legítima), e impunidade dos poderosos. Quanto aos medianos, contam estes principalmente com a deficiência estrutural das instituições policiais, judiciárias e acusatórias, além das falhas da legislação, para escaparem da justa persecução penal que deveriam se sujeitar, engrossando assim as estatísticas da impunidade. Os desafortunados, por sua vez, contam apenas com a deficiência estrutural referida para ganharem o título de impunes, pois normalmente não possuem recursos para custear uma defesa capaz de garimpar, nas frestas da lei, um detalhe extraordinário que lhes beneficie.
O fator estrutural, contudo, no caso dos desafortunados, em algumas situações, ao reverso de proporcionar impunidade, possibilita a punição injusta, pois é interesse do poder estatal (abstratamente considerado) punir alguém, até mesmo para justificar sua relativa inoperância. E nesse instante se assiste a dicotomia das duas faces da celeridade processual: a) a primeira, do processo do poderoso, onde a celeridade está a mercê da defesa (ela dita o ritmo – trava quando seu constituinte está solto, e acelera quando ele está preso); b) a segunda, do processo do desafortunado, onde o crime normalmente é de fácil elucidação (geralmente não há organização sofisticada para prática do delito), a defesa é meramente formal, não usando recursos, incidentes processuais ou qualquer outro instrumento legal de protelação, tendendo a condenação a ser rápida e a execução da pena imediata. Nessa segunda hipótese é que algumas instituições persecutórias normalmente tentam se apresentar como eficientes no intuito de mascarar a real inoperância.
Fundamentos da pena, garantismo penal e realidade brasileira
Não é concebível um Direito Penal sem sanção. A pena, portanto, é o alicerce do Direito Repressor.
A pena encontra, diante disso, uma tríplice fundamentação, que dá sustentáculo à própria existência do Direito Penal.
Nesse andar as lições de Luiz Flávio Gomes (2007, v.2, pp. 655-658):
A justificação do Direito penal (isto é, das penas), já se disse autorizadamente, é uma questão que tem merecido a devida atenção da Filosofia, da Teoria do Estado assim como da Ciência do Direito penal (aliás, desde as origens dessa disciplina).
(...)
A pena conta com tríplice fundamentação: política, psicossocial e ético-individual:
1. Do ponto de vista político-estatal a pena se justifica porque sem ela o ordenamento jurídico deixaria de ser um ordenamento coativo capaz de reagir com eficácia diante das infrações.
2. Desde a perspectiva psicossocial a pena é indispensável porque satisfaz o anseio de justiça da comunidade.
Se o Estado renunciasse à pena, obrigando o prejudicado e a comunidade a aceitar as condutas criminosas passivamente, dar-se-ia inevitavelmente um retorno à pena privada e à autodefesa (vingança privada), próprias de etapas históricas já superadas.
3. No que se relaciona com o aspecto ético-individual, a pena se justifica porque permite ao próprio delinqüente, como um ser “moral”, liberar-se (eventualmente) de algum sentimento de culpa.
O mesmo autor vaticina que (idem, p. 657): “Uma sociedade que quisesse renunciar ao seu poder penal se autodestruiria”.
Como se vê, um Direito Penal que não pune ninguém está fadado a uma crise existencial.
O fiel modelo garantista (do qual um dos mais notáveis defensores, na doutrina pátria, é o professor Luiz Flávio Gomes, citado nas linhas pretéritas) não pretende, portanto, eliminar a atuação do Direito Penal. Não é, destarte, um modelo que propugna o abolicionismo penal. Se buscasse isso, deveria ser sumariamente descartado, considerando o recrudescimento da criminalidade que impera em nosso meio.
Ademais, no Brasil, na busca de fundamentação para sua existência, e condicionado por um conjunto variado de fatores (alguns já referidos nos tópicos anteriores) o Direito Penal, através de seus operadores estatais tem punido, e punido muito. Tanto isso é verdade que a população carcerária nacional é uma das maiores do mundo. E nem por isso temos assistido uma redução nos alarmantes índices de criminalidade.
Essa constatação possibilita duas leituras diametralmente opostas: a) pelo lado dos punitivistas, de que a legislação, ainda permissiva, deve enrijecer no sentido de permitir mecanismos mais rigorosos de repressão, mesmo que isso implique, inevitavelmente, um avanço do poder estatal em face dos direitos individuais dos cidadãos; b) pelo ângulo dos garantistas, que a legislação é bastante dura, e que o aumento da criminalidade apenas revelou que o seu enrijecimento não é eficaz para alcançar o desiderato por todos almejado.
Essas visões totalmente opostas são naturais diante das concepções conflitantes; ou seja, atualmente os punitivistas acham que a legislação é garantista demais, enquanto que os garantistas defendem que ela é extremamente punitivista.
Não queremos ingressar nessa polêmica, pois esse debate dá azo a infindáveis argumentos. Para nós é certo que a legislação pátria possui certos dispositivos com traços garantistas e outros com características punitivistas; havendo, decerto, preponderância de uma dessas características no que diz respeito ao todo, mas aqui não queremos entrar no mérito dessa discussão.
Desejamos atacar por outro vértice.
Propomos, como ponto inicial, para averiguarmos se realmente os fundamentos teóricos da pena têm encontrado ressonância no nosso sistema repressor, seja observada a imensa população carcerária brasileira, visto que esta materializa o efeito prático da atuação do nosso Direito Penal em seu aspecto mais gravoso.
Em uma análise empírica constatamos que grande parte dos indivíduos (quase a totalidade) que compõe essa população é de pobres ou miseráveis.
Diante disso, o observador desatento chegará à seguinte conclusão: no Brasil somente pobre delinqüe. Claro, se o Direito Penal tem na pena o seu principal instrumento de atuação, e se somente estão cumprindo penas pessoas predominantemente pobres, é porque somente eles delinqüem.
Esse mesmo observador, no entanto, ao ler, ouvir ou ver o noticiário se depara com diversas matérias dando conta de corrupção, crimes financeiros e fraudes diversas; ilícitos estes imputados a “ilustres” cidadãos que ocupam postos de destaque no setor público ou privado.
O sujeito, como dito: por sua natureza, desatento; diante disso, passa a não entender mais nada.
Ora, se tanto pobres quanto ricos delinqüem, por qual razão a cadeia está cheia somente de pobres?
É aí que queremos chegar. Segundo pensamos, a explicação está justamente no fato que, em nossa pátria, somente os poderosos (intocáveis) e os medianos (integrantes da classe média) conseguem ter acesso à face garantista da legislação. Os primeiros, inclusive, conseguem lançar mão do supergarantismo, modelo exclusivamente nacional.
Essa conclusão, contudo, não pretende fornecer fundamento para uma cruzada contra todas as pessoas que possuam algum poder, pois solução nesse sentido seria uma nefasta manifestação da pior face do direito penal do inimigo. Não é isso. Ela deve servir como uma honesta radiografia da realidade, que somente não vê quem não quer, ou que não tenha ainda parado para observar criticamente, no cotidiano, o funcionamento do nosso modelo persecutório penal.
Algo, portanto, está errado no manejo dos mecanismos de atuação do Direito Repressor vigente em nosso país; pois se a sua razão de ser é a sanção, e se ninguém consegue aplicá-las àqueles que ora denominamos de intocáveis, forçoso reconhecer que temos um Direito Penal que está com sua atuação neutralizada (quase que totalmente anulada) no tocante à punição de poderosos. Há para estes uma espécie de abolicionismo penal fático.
Nossa indignação é que, aparentemente, quase ninguém enxerga essa realidade tão evidente.
Talvez isso se explique pelo fato da dogmática penal interna ser espelhada, em grande parte, em construções teóricas importadas que não passaram pelas devidas adaptações. Sendo fato que há juristas da área, e com grande influência nos rumos da política criminal adotada internamente, que parecem viver somente em corpo no Brasil, mas que em mente e espírito vivem em países de Primeiro Mundo, onde em outros tempos tiveram a oportunidade de buscar subsídios para suas brilhantes teses que não conseguem sair do campo da abstração diante da realidade nacional.
Fazemos, assim, um apelo para aqueles que têm poder suficiente para influenciar nos rumos do nosso Direito Penal: considerem que ele tem que pressupor a realidade existente em nosso país; pois será infeliz qualquer tentativa de querer aplicar mecanismos que bem servem ao Primeiro Mundo, mas que aqui são inócuos. Não estamos falando aqui em abandonar a racionalidade da persecução penal, hoje já bem sedimentada em países mais desenvolvidos cultural e economicamente. Estou falando sim, de adotar essa racionalidade, e até mesmo com traços evolutivos no ponto de vista de respeito à dignidade da pessoa humana (pressuposto inafastável de qualquer modelo respeitável de persecução penal), mas com atenção ao dia-a-dia dos brasileiros.
Conclusão
Apesar de desacreditarmos que medidas, a curto ou médio prazos, sejam adotadas no sentido de corrigir as evidentes distorções apontadas no presente texto; esperamos que uma semente de senso crítico quanto às peculiaridades ora abordadas seja plantada em alguns leitores. De fato, não dá para se esperar muito no sentido de eliminar privilégios faticamente legitimados há séculos, em um país no qual, contemporaneamente, se considera que a restrição (quase proibição, faticamente falando) do uso de algemas em pessoas legitimamente presas é prioridade na defesa dos direitos humanos, em detrimento, por exemplo, de se determinar, com a mesma força e urgência, alguma medida efetiva no sentido de que se adotem providências para ordenação do sistema carcerário, no qual são mantidas pessoas (a que tudo indica, nenhuma “ilustre”) espremidas em masmorras, revezando-se para ter um lugar para deitar no chão (geralmente repleto de excrementos) na hora de dormir.
Em derradeiro, cabe uma ponderação: acaso o leitor tenha identificado simetria entre as colocações abstratamente articuladas no presente artigo com determinado(s) fato(s) concreto(s) de nossa história recente que lhe inspire indignação, isso comprovará o acerto de nossa exposição.