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[Artigo: O Caóismo Constitucional]

Artigo: O Caóismo Constitucional

*Por Silvia Cerqueira

Esse texto pretende apenas fazer um singelo registro dessa personalidade cuja magnitude humana, intelectual, figura divertida, experiente e, acima de tudo, eloquente de Carlos Alberto Caó de Oliveira, que carinhosamente o tratávamos como Betinho. Baiano e morador da Federação, meu vizinho de bairro e fundador da Associação dos Moradores da Federação, ele era filho de Dona Martinha, chamada por ele amorosamente de Dona Miúda, e do Sr. Themístocles, irmão da Dra. Lia e do Dr. Dery, mui amados por ele.

Tive o privilégio e a felicidade de desfrutar dessa ilustre amizade, a ponto de honrosamente ingressar na minha cozinha, para preparar uma picanha de búfalo e um suculento assado de carne de javali, trazida por ele do Rio de Janeiro. Regada a vinho e ervas, sob a sua total orientação que acredito ter saído de acordo com os seus ensinamentos, haja vista que não houve reprovações, muito pelo contrário, saiu a contento.

Esse divertidíssimo e histórico jantar se deu há mais de 20 anos. Compartilhado com o Dr. Carlos Moura, autor dessa ponte de amizade inesquecível e saudosa, entre outros queridos amigos, todos ligados à militância negra, que sempre esteve presente em nossas vidas e não abdicávamos dela nem mesmo nesses momentos. Para não esgotar o meu limite de escrita só nessas boas lembranças, não poderia perder a oportunidade de compartilhar mais um registro, para mim histórico e obrigatório, que era o de levarmos ele, quando saíamos do aeroporto de Salvador diretamente ao Boteco do (Farias), no Largo do Garcia, para comer, lambretas um (marisco). 

Preciso parar por aqui porque as lembranças são tantas e a saudade tão grande que o meu limite de texto se esgotaria, se não fizer de pronto esse corte. Caó nos deixou muitos legados em razão da sua vasta formação curricular: fosse no ativismo social, negro, que passa pela luta, pela consolidação da democracia; quando preso e torturado. Vice-Presidente da UNE, sindicalista, político, fosse à perspectiva acadêmica como jornalista, advogado, membro do IAB, etc.  

Como parlamentar, Caó deixa o maior legado para a comunidade negra, enquanto precursor do constitucionalismo antirracista,  materializado através da Lei 7.716 de 5 de janeiro de 1989, formatado como norma  infraconstitucional regulamentando e definindo pela primeira vez às condutas racistas, criminalizando-as e consequentemente pavimentando o significado do contraponto do combate ao racismo, bem como a sua  descrição expressa, como um coletivo de atores que até então, os algozes da colonização brasileira que dominaram a nação estabeleceram hierarquias baseadas em critérios diferenciadores, calcados nas teorias eugênicas destacando a superioridade das raças, a branca sobre a negra, em razão da cor da pele e consequentemente a hegemonia  dos brancos sobre os afro-brasileiros, estabelecendo uma desigualdade sem precedentes na história do Brasil. 

Em contrapartida, na perspectiva constitucionalista, sobretudo nas sociedades modernas o respeito à dignidade da pessoa humana, vem a cada dia se consolidando de forma tal que o multiculturalismo se firmou, ultrapassando o universalismo, pós-guerra, dando lugar a um processo evolutivo dos direitos sedimentados na liberdade, igualdade e a fraternidade, possibilitando a sociedade a participação efetiva dos governados na formação da vontade do Estado. E assim, também possibilitando o surgimento de novos atores da juridicidade, cuja evolução permitiu fazer uma diferenciação entre sujeitos individuais abstratos e sujeitos coletivos.  E nessa seara se inclui o coletivo negro, possibilitando a perfeita compreensão de que: “O antigo sujeito individualista, abstrato e universal cede espaço para novos e coletivos sujeitos que gravitam agora em torno de questões de natureza urbana, rural, étnica, religiosa, estudantil, ambiental, feminista, etc.” (WOLKMER, 2015, p.280). 

Nessa senda, com foco ainda nos direitos humanos, resta ponderar a concepção da interculturalidade que nada mais é que a convivência entre às pessoas desenvolvendo o respeito mútuo, a tolerância e consequentemente de forma harmoniosa desenvolver um movimento  “in concreto” mais amplo de respeito aos diferentes, na cultura, no pensamento, na ancestralidade, etc., e não mais de condutas estanques; mas em movimentos de ajustes preservando as suas especificidades, numa atitude de normalização das diferenças sociais e raciais.  

Nessa linha da interculturalidade a proposta é, que a convivência se dê de forma para que os grupos não se discriminem entre si, pautados em aspectos diferenciadores que possam vir a gerar a desigualdade, mas que se venha a ser sedimentada uma clara construção de cultura antirracista, de respeito e alteridade, ultrapassando, inclusive a multiculturalidade.

Desse modo, a compreensão dos Direitos Humanos pautado na interculturalidade inaugura uma projeção para superação de obstáculos seja de natureza étnico-racial, preconceitos, dificuldades linguísticas, hegemonia histórica entre grupos, com vistas sempre a consolidar a inclusão social e a cidadania. 

Ressalte-se por oportuno que a interculturalidade na perspectiva de Direitos Humanos se encaixa perfeitamente ao ideal de legitimidade do cidadão, no combate ao racismo ora perseguido.

Assim, com esses sentimentos o Caóismo Constitucional se instalou na legislação brasileira a partir da percepção do autor da lei, agregado ao seu ativismo histórico negro, enquanto partícipe desse processo de construção cidadã e democrática, viu o vácuo que se instaurou no ordenamento jurídico e  a oportunidade que o parlamento federal lhe conferia, na condição de deputado, enxergou consequentemente a necessidade de regulamentar de imediato o dispositivo constitucional prescrito no art.5º, do inciso XLII da Constituição Federal de 1988 que descreve: a pratica do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão nos termos da lei.

Embora houvesse a previsão para a conduta do racismo na Constituição Federal de 1967 que prescrevia que “o preconceito de raça será punido pela lei”, cujos termos foram ratificados “ipis verbis” pela Emenda 1969, contudo, ao não criminalizar e deixar tal comando a discricionariedade do legislador em fazê-lo, ou não, e o mais grave adequá-lo como ilícito de natureza civil era um estímulo a impunidade e as práticas racistas.
O que chamamos de Caóismo Constitucional se deveu a elaboração de pronto da infraconstitucionalidade normativa, traduzida no elenco de 21 artigos, entregue a comunidade negra, a sociedade e sobretudo ao ordenamento jurídico, um instrumental legal que previa a não discriminação de qualquer ser humano em razão da raça; e mais, em caso de haver tal violação esta conduta deveria ser criminalizada.

Assim, tal previsão foi prescrito no preâmbulo da Lei nº 7.716, no art. 1º: 

Art. 1º Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de preconceitos de raça ou de cor.

No entanto, essa lei serviu de farol para toda e qualquer iniciativa de combate a todas as formas de racismo, bem como de norte para a construção da cultura antirracista e o desmonte para o racismo estrutural e o institucional.

Assim, no que pese a constituição instrumentalizar em potencial a atividade jurisdicional Estatal, é a norma infraconstitucional que concretiza o direito pleiteado pelo cidadão, sejam os direitos sociais, individuais, a liberdade, a segurança, ao desenvolvimento, a igualdade, etc.

A amplitude da lei Caó em seus 21 artigos, perpassa todo o elenco dos direitos acima mencionados, abrindo posibilidades para agregar outros direitos, conforme se vê da Lei nº 9459/1997 que alterou os artigos 1º e 20º da lei 7716/1989 e acrescenta ao art. 140 do Decreto – lei nº 2.848/1940.    

Art.1º Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

"Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Pena: reclusão de um a três anos e multa.

§ 1º Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo.

Às vésperas de abrigar nova alteração através da PL 4974/2020 para incluir os crimes que especificam todos os elementos estéticos alusivos ao nazi-fascismo, bem como os atos de promoção, negação, depreciação, deflexão, inversão, universalização e trivialização do Holocausto Judeu e, ainda, em relação a ele, os atos de abuso, obliteração ou silenciamento da memória e as alusões de equivalência antes da guerra e em tempo de guerra e as alusões de equivalência pós-guerra.

Concluindo o Caóismo Constitucional através da normativa infraconstitucional inaugurou uma nova era rumo a consolidação da democracia, destacadamente no seio das instituições fossem públicas ou privadas cujos frutos estamos em processo de colheita, seja na implementação das ações afirmativas (cotas raciais), seja na desconstrução do racismo estrutural e institucional, seja conferindo ao ordenamento jurídico normativa adequada ao tipificar e criminalizar o preconceito racial, bem como seja a sedimentação da jurisdição constitucional , com vistas a efetivar a igualdade material por intermédio do Estado-Juiz.

Assim, aproveito esse momento para com este simbólico gesto lhe homenagear e conferir a sua importância e o grande legado que você deixou para a comunidade negra.

Valeu a sua existência mui querido Caó!

*Silvia Cerqueira é presidente da Comissão Nacional de Promoção da Igualdade do CFOAB, suplente do Senado Federal e membro do Instituto dos Advogados Brasileiros.